Flavia Albaine
13 de setembro de 2024, 20h52
Setembro é o mês oficial de luta pela inclusão social da pessoa com deficiência, conhecido como Setembro Verde. A data é comemorada no dia 21, mas o tema deve debatido no decorrer de todo o ano, diante da importância da temática e das dificuldades que as pessoas com deficiência ainda encontram para o exercício dos seus direitos fundamentais.
De acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) de 2022, 18,6 milhões de pessoas no Brasil, com dois anos ou mais de idade, possuíam alguma forma de deficiência, o que representa 8,9% da população. Esse é umntingente heterogêneo de pessoas com características funcionais distintas que se manifestam em diferentes categorias de deficiência, como física, mental, intelectual, visual, auditiva e outras.
Em termos de legislação, há dois grandes marcos no Brasil sobre os direitos dessas pessoas: a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, internalizada pelo Brasil com status constitucional (Decreto 6.949 de 2009), e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146 de 2015). Mas em que pese a legislação existente, os desafios impostos para as pessoas com deficiência ainda são enormes.
As legislações mencionadas trazem o modelo social de deficiência como o modelo a ser adotado atualmente na abordagem da deficiência, tanto em âmbito interno assim como na seara internacional. Ele surgiu no final da década de 60 e início da década de 70, como resposta às abordagens biomédicas.
Limitações da sociedade
O modelo social de deficiência é baseado em dois grandes pressupostos. O primeiro é de que as causas que originam a deficiência não são religiosas e nem científicas, mas preponderantemente sociais. Ou seja, a raiz do problema não está nas limitações individuais do ser humano, e sim nas limitações da própria sociedade que não consegue prestar serviços apropriados e garantir que as necessidades das pessoas com deficiência sejam levadas em consideração dentro da organização social.
O segundo pressuposto refere-se à importância da pessoa com deficiência para a comunidade em que ela está inserida. Partindo-se do raciocínio de que toda vida humana é igualmente digna, considera-se que as pessoas com deficiência têm muito a contribuir para a sociedade, ou que, pelo menos, a contribuição será a mesma que o restante das pessoas sem deficiência. Tal raciocínio encontra-se intimamente ligado com o processo de inclusão e com a aceitação das diferenças.
onsiderando que as causas que originam a deficiência são sociais, então as soluções não devem ser direcionadas individualmente à pessoa afetada, mas sim à sociedade. Dessa forma, o modelo social defende a reabilitação ou normalização de uma sociedade — e não de pessoas com deficiência — que precisa ser pensada e projetada para atender as necessidades de todos.
Desta forma, a deficiência passa a ser vista como a resultante da interação entre as características individuais do sujeito mais as barreiras existentes na sociedade que ele está inserido. O modelo social está ligado ao fenômeno da inclusão, em que a sociedade é chamada a se adaptar para acolher as pessoas com deficiência, e não o contrário.
Capacitismo estrutural
As dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência para o exercício de direitos, assim como as violências sofridas são decorrentes do capacitismo estrutural presente na sociedade brasileira. Capacitismo é o movimento de preconceito, discriminação e violência contra a pessoa com deficiência, baseado em estereótipos equivocados e ultrapassados de que são pessoas incapazes e nada têm a oferecer para a evolução social.
Esse capacitismo configura-se enquanto um tipo de violência estrutural (dentre outras violências estruturais existentes tais como o racismo, o machismo, a LGBTfobia) diante de algumas características que o constituem, quais sejam:
1. trata-se de uma violência pulverizada, ou seja, são várias práticas que ocorrem simultaneamente em diferentes espaços sociais de diferentes localidades geográficas.
2. Muitas ações discriminatórias são normalizadas pela própria sociedade, que não as enxerga como sendo algo de cunho preconceituoso.
3. Em algumas situações a vítima é culpabilizada pela violência sofrida, sofrendo uma revitimização.
4. O combate a esse tipo de situação ocorre em rede, sendo de responsabilidade dos diferentes atores sociais (públicos e privados) tanto na esfera individual como na coletiva.
5. A resposta social deve ocorrer tanto na repressão dos atos já praticados com respostas estatais justas em tempo célere, assim como em políticas de prevenção e conscientização para que novos atos não venham a ocorrer.
O capacitismo estrutural faz com que instituições sociais responsáveis pela regulação dos mais diversos aspectos da vida sigam uma lógica excludente, o que gera um ciclo de marginalização social: pessoas com deficiência que não conseguem ter acesso à educação inclusiva encontram dificuldades para a inserção no mercado de trabalho, e pessoas sem acesso ao mercado de trabalho enfrentam obstáculos para obterem uma moradia digna além de outros direitos fundamentais. Por isso, é urgente que esse ciclo seja interrompido através da eliminação de barreiras.
Barreiras para inclusão
Barreiras são obstáculos enfrentados pelas pessoas com deficiência para o exercício de seus direitos e deveres em igualdade de condições com as demais e com o maior grau de autonomia possível. Essas barreiras estão expressamente previstas na Lei Brasileira de Inclusão e podem ocorrer de diversas maneiras, tais como nos transportes, nas comunicações, nas construções arquitetônicas e outros.
Dentro de tal universo, chama-se atenção especial para as barreiras atitudinais, que são as provenientes das atitudes humanas de preconceito e exclusão, acabando por gerar as demais e, portanto, sendo considerada o tipo de barreira mais grave. Isso significa que todo nós — cada qual dentro do seu papel social na vida pública e na vida privada — pode configurar-se enquanto uma barreira atitudinal. Por isso, a importância da autoconscientização na desconstrução de valores equivocados que nos foram passados outrora, pois a mudança estrutural coletiva é a soma de inúmeras mudanças individuais.
Um exemplo comum de barreira atitudinal se expressa por meio do capacitismo recreativo, que é a opressão contra a pessoa com deficiência através do humor. O agressor se sente confortável para praticá-lo por ser um preconceito maquiado de diversões e brincadeiras, e que as ofensas podem ser realizadas por não serem diretas e explícitas, o que faz com que sejam mais toleradas pela sociedade.
De acordo com o modelo social de deficiência adotado tanto em âmbito interno quanto em âmbito internacional, a responsabilidade pela eliminação das barreiras é da sociedade, ou seja, de todos os atores públicos e privados nos exercícios dos seus papéis sociais. E para que haja a efetiva eliminação ou, ao menos, a amenização de tais barreiras, é necessário que haja investimento em educação, conscientização, prevenção, acessibilidade, políticas de empoderamento dessas pessoas e ações afirmativas para a colocação dessas pessoas nos diferentes espaços sociais.
Discriminação por associação
Importante frisar, ainda, sobre a existência do capacitismo estrutural reflexivo, que é aquele que atinge os familiares de pessoas com deficiência, que por muitas vezes também são vítimas de preconceito. Trata-se de uma discriminação por associação, que é exatamente a discriminação contra pessoas com base em sua associação com uma pessoa com deficiência, atingindo principalmente mulheres em papéis de cuidadoras de pessoas com deficiência.
Outro fator importante no combate às diversas formas de violência contra a pessoa com deficiência é a consideração da interseccionalidade, que significa, em resumo, analisar outros fatores de vulnerabilidade que recaem sobre as pessoas com deficiência. Como dito alhures, o grupo composto por pessoas com deficiência não é homogêneo e, portanto, as necessidades podem variar.
A título exemplificativo, a maneira como o capacitismo atinge uma mulher negra com deficiência e idosa é diferente da forma como recai sobre um homem branco jovem com deficiência. A mulher citada, além do capacitismo, também precisa enfrentar o racismo, o etarismo e o machismo, fazendo com que ela seja vítima de uma vulnerabilidade interseccional, pois há vários fatores de exclusão incidindo sobre a mesma simultaneamente. Portanto, as políticas públicas de inclusão dessas pessoas não podem ignorar a interseccionalidade existente.
No tocante ao direito à educação, a recusa de matrícula escolar de pessoa com deficiência em razão da deficiência constitui crime nos termos do artigo 8 da Lei 7853/89. Ademais, o aluno com deficiência tem direito às medidas de apoio escolar que se fizerem necessárias de acordo com as suas necessidades, não podendo haver a cobrança de nenhum valor adicional por isso nos termos da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 5357 já julgada pelo Supremo Tribunal Federal.
Direito à educação e à saúde
Ainda dentro do direito à educação, a pessoa com deficiência que estiver em fase de investigação sem o diagnóstico fechado também tem direito à medida de apoio escolar caso haja necessidade, nos termos da Nota Técnica 04 de 2014 do MEC — a referida nota técnica refere-se especificamente ao autismo, mas pode ser aplicada para outros tipos de deficiência por analogia.
Sobre o direito à saúde, a jurisprudência dos tribunais superiores tem enfrentando diversos casos envolvendo o autismo — que para fins jurídicos é uma deficiência — e, em sua maioria, as decisões têm sido favoráveis à pessoa autista. Tais decisões podem ser aplicadas por analogia e com as devidas proporções na proteção do direito à saúde de outras pessoas com deficiência.
A título exemplificativo, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu que a psicopedagogia, a equoterapia e a musicoterapia são de cobertura obrigatória pelas operadoras de plano de saúde para os beneficiários autistas.
No tocante à psicopedagogia, recentemente a 3ª Turma do STJ entendeu que plano de saúde não é obrigado a cobrir psicopedagogia para beneficiário autista quando em ambiente escolar ou domiciliar, mas apenas em ambiente clínico quando realizado por profissional da saúde.
Eis que somente nessa hipótese configura efetiva prestação de serviço de assistência à saúde, podendo ser objeto do contrato de plano de saúde disciplinado pela Lei 9656/98 — ressalvada a possibilidade de haver previsão contratual para cobertura do tratamento em ambiente escolar ou domiciliar.
Ainda no tocante ao direito à saúde, o STJ também já entendeu que é devida a cobertura do tratamento de psicoterapia sem limitações de sessões, assim como a terapia pelo método ABA está contemplada no rol da ANS na sessão de psicoterapia.
Inclusão no trabalho
No tocante à inclusão social das pessoas com deficiência no mercado de trabalho, o primeiro grande obstáculo enfrentado pelas pessoas com deficiência dentro dessa seara é o acesso à vaga de emprego. Eis que ainda prevalece na nossa sociedade a crença em estereótipos equivocados de que são pessoas doentes, fracas e que não possuem condições de ofertar uma mão de obra qualificada, o que faz com que muitas não sejam contratadas.
Para contornar esse primeiro grande obstáculo, no Brasil há políticas afirmativas de cotas para a contratação de pessoas com deficiência tanto no setor público como no setor privado, e que objetivam reverter esse histórico de marginalização social. Nesse sentido é o artigo 37, VIII, Constituição, Lei 8.213 de 1991, e outras.
Mas apesar da legislação existente prevendo as cotas, há projetos de lei brasileiros em tramitação que significam ameaças para os direitos conquistados. Exemplo de tal situação é o Projeto de Lei 6159/19 que causa um esvaziamento da Lei de Cotas na medida em que traz previsões como o fato de a cota de aprendiz ser computada também para a cota de pessoa com deficiência, diminuindo mais uma vaga no mercado.
Situação de vulnerabilidade
Ademais, ficam excluídas das cotas as seguintes situações: atividades cuja jornada não exceda a 26 horas semanais (que são exatamente as jornadas ideais para as pessoas com deficiência), atividades ou operações perigosas, e atividades que restrinjam ou impossibilitem o cumprimento da obrigação (expressão vaga e que dá ensejo ao empregador incluir a atividade que quiser para não observar o sistema de cotas). E mais: as empresas de prestação de serviços terceirizados e temporários que prestam serviços aos órgãos públicos estariam desobrigadas de cumprir as cotas.
Uma vez superada a fase da contratação, e já estando a pessoa com deficiência contratada, os desafios continuam na medida em que muitas empresas realizam apenas a integração dessas pessoas e não a verdadeira inclusão no ambiente laboral.
Na integração, a empresa exige que a pessoa com deficiência se adapte ao ambiente. Já na inclusão a empresa está preocupada com a eliminação das barreiras de forma a proporcionar o exercício do trabalho com o maior grau de autonomia possível e em condições de igualdade com os demais trabalhadores. Nesse último caso, a empresa investe em acessibilidade e tecnologia assistiva para pessoas com deficiência, além de adotar uma política interna de combate ao capacitismo, motivação, aceitação e qualificação.
As pessoas com deficiência integram um grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade diante das barreiras impostas pelo capacitismo estrutural. Todos nós dentro dos nossos papéis sociais possuímos a missão constitucional de eliminar barreiras — ou, quando não for possível a eliminação, que haja a amenização dessas barreiras — que impedem que pessoas com deficiência exerçam os seus direitos fundamentais. Portanto, a luta anticapacitista não é apenas minha ou sua, ela é nossa.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-set-13/setembro-verde-e-a-luta-pela-inclusao-social-da-pessoa-com-deficiencia/
Nenhum comentário:
Postar um comentário